O Falhanço do Mendonça e o sotão com a Sofia
Há cerca de um mês fui visitado no meu local de trabalho por um amigo e ex-colega do meu pai e sua respectiva companheira e ex-mulher (não sei se voltaram a casar). Fiquei algo surpreso com a sua visita, nem sabia que ele sabia onde eu estava a trabalhar.
Troca de galhardetes da praxe, "como vai a família?", "ele já teve um filho!?", "já é avô!", "o meu irmão já se casou!", "também não está a trabalhar na área, mas não está mal!". Ficou admirado por eu trabalhar naquele local, apesar de ser licenciado. Pediu-me meia-desculpa por "não terem conseguido", por "terem tentado mas não terem conseguido".
Referia-se à revolução. Na altura, ele, o meu pai e muitos outros participaram no processo revolucionário sem serem os seus protagonistas. Propunham-se ideias, debatiam-se conceitos, informava-se, educava-se o povo (que na maior parte das vezes não sabia ler nem escrever). Não foram eles que conduziram Chaimites, nem andaram de G3 engalanada de cravos mas também participaram. E sentem que falharam. Falharam porque não conseguiram tudo aquilo a que se tinham proposto. Falharam porque olham para o país actual e sentem que foram enganados, traídos, muitas vezes pelos próprios camaradas (que hoje já mudaram de cor política e têm vergonha desses tempos de "camaradagem").
Foi nestes termos que o Mendonça me pediu desculpa. E eu aceitei, e disse-lhe que a culpa não era dele. Mas percebo o que ele sente, a desilusão, e sei que eu dizer-lhe que ele não tem culpa não o faz deixar de pensar que talvez pudesse ter feito mais, que talvez não devessem ter sido tão ingénuos. Agora ele esquece-se que foi também essa ingenuidade e a capacidade de sonhar um futuro diferente que despoletaram tudo. Que foi essa a grande força que permitiu a mudança. Que nos deu a mui badalada (e esbanjada) Liberdade. Esquece-se porque sente que falhou, que nos falhou, a nós, que viemos depois.
Reparem que este não é um homem amargurado, nem obcecado por este fracasso, é um tipo bem-disposto, que sempre que se junta com o meu pai produz gargalhadas e lágrimas de riso com as histórias deles. Mas ele não esquece.
Despedimo-nos, enviando cumprimentos às respectivas famílias. E só quando o Mendonça já tinha saído, quando já não podia perguntar-lhe, é que me lembrei do nome que procurava enquanto conversávamos: Sofia.
Eu devia ter 10 anos, a Sofia teria 12. Era Sábado. Nós fomos às Caldas da Rainha numa rara visita ao Mendonça. Já nos tinhamos encontrado em férias no Algarve mas nunca tinha ido ter com eles às Caldas. O apartamento ficava no último andar dum prédio recente e tinha uma escada interior que dava para o sotão. Como fomos cedo os adultos foram à feira às compras para o almoço e nós ficámos em casa: eu, o meu irmão, a Sofia e o irmão dela (pouco mais velho, o tal que teve agora um filho).
Já lhe tinha achado piada nas férias. Era uma miúda alegre, vivaça, gira, de dentinho de coelho. É claro que fomos todos para o sotão, já não me lembro fazer o quê - talvez aquele jogo da torre de peças de madeira, em que vamos tirando peças sem que a torre caia - mas lembro-me do que pensava. Por um par de horas aquele sotão saiu fora do resto do mundo, pertencia a outro sítio qualquer. "Se tivessemos um acidente e ficássemos presos numa ilha deserta eu casava-me com a Sofia!" Ingenuamente ridículo, este pensamento viria a repetir-se durante muitos anos, aplicado a várias pessoas. Muitas vezes pensei que só assim poderia dar certo, se não houvessem distrações ou (mais tarde) concorrência. Idiotice!
Depois de almoço fomos a Peniche, o Pedro foi à praia, eu e os outros não (com muita pena). Lanchámos tardiamente na casa das Caldas e voltámos para casa (com muita pena). Teria de voltar para as minhas paixonetas da escola. Não vi a Sofia durante anos.
Já na faculdade, voltámos às Caldas. O Mendonça estava igual, apesar do divórcio, apesar da doença degenerativa do sistema nervoso periférico do irmão. Voltei a ver a Sofia, estava de férias como eu, estudava no Norte, julgo que em Braga ou Bragança. Já não era uma miúda. Era uma jovem mulher alegre, vivaça, gira, ainda ligeiramente de dentinho de coelho. Trocámos cromos, relembrámos histórias e despedimo-nos.
Nunca mais a vi. Tive pena de não me lembrar do nome dela até depois do Mendonça se ter ido embora, no outro dia. Perguntei-lhe pelo Pedro mas não me lembrei do nome dela. Queria ter-lhe perguntado como estava, certamente casada ou junta, com um emprego razoável, a viver provavelmente noutro sítio, até talvez no estrangeiro. Podia ter simplesmente perguntado pela filha ou pela mais nova, mas não. Agora não faz sentido mas nenhuma outra maneira me pareceu adequada. Tinha de lhe perguntar por ela...pela Sofia.
Longa vida a El Rey!
(e com aquele grito, erguendo bem alto a sua cruz, o cardeal-guerreiro lançou-se sobre a coluna sarracena)
Monsenhor de Carvalho, Cardeal do Reino, Consul de Cipango, Conde de Vialonga